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Tráfico de pessoas para exploração sexual: análise da vulnerabilidade das vítimas

A exploração de indivíduos vulneráveis ou pertencentes a uma minoria sempre esteve presente na sociedade. Atualmente, uma das formas mais comuns de exploração é a sexual e ocorre, principalmente, contra mulheres e por meio do crime de tráfico de pessoas.

O tráfico de mulheres com a finalidade de exploração sexual é uma das atividades criminosas mais atrativas atualmente. Isto porque, além do seu grande lucro, é um crime de difícil descoberta e denúncia.

A estimativa é de que o tráfico movimenta cerca de 32 bilhões de dólares por ano e que o número de pessoas traficadas, segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), é 800 mil anualmente.

Legislação Internacional

As políticas sobre o tráfico de pessoas ganharam força a partir do ano de 2000, com a criação do Protocolo de Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, popularmente conhecido como Protocolo de Palermo, o principal aparato jurídico internacional sobre o tema e o grande marco da regulamentação desse crime.

O mencionado Protocolo surgiu a partir da Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, aprovada pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) em novembro de 2000.

O conceito de tráfico de pessoas no Protocolo está previsto em seu artigo 3º, alínea “a”. Já na alínea “b”, acrescenta que o consentimento dado pela vítima será considerado irrelevante caso existe qualquer uma das modalidades de vício previstas na alínea “a”.

Legislação Nacional

No Brasil, a regulamentação se dá por meio do artigo 149-A do Código Penal, o qual conceitua o tráfico de pessoas da seguinte forma:

Art. 149-A: Agenciar, aliciar, recrutar, transportar, transferir, comprar, alojar ou acolher pessoa, mediante grave ameaça, violência, coação, fraude ou abuso, com a finalidade de:
(…)
V – exploração sexual.

Nota-se que para existir o crime de tráfico de pessoas é necessário que se tenha a presença de algum vício de consentimento, ou seja, é necessário que tenha ocorrido grave ameaça, violência, coação, fraude ou abuso, conforme previsto no caput do artigo. Inexistindo o vício, o consentimento dado pela vítima é válido, descaracterizando o crime.

Contudo, nem sempre foi dessa forma. A redação anterior do Código Penal não incluía os vícios de consentimento como partes do conceito do crime, apenas como causas de aumento da pena. Assim, o consentimento da vítima era sempre irrelevante e desconsiderado em qualquer contexto, pois não era necessário a existência de vícios para que o crime fosse caracterizado.

Porém, com o advento da Lei n. 13.344 de 2016, os vícios passaram a fazer parte do conceito do crime de tráfico de pessoas e, por isso, sem eles o crime não existe. Assim, atualmente, o consentimento válido/livre de vícios dado pela vítima é relevante e faz com que não exista a conduta criminosa.

Aqui se faz importante destacar que o termo “abuso” utilizado no artigo 149-A do Código Penal deve ser interpretado como “abuso da situação de vulnerabilidade”, tal como previsto no Protocolo de Palermo.

A questão que se faz necessária discutir é: será que essa vulnerabilidade é de fato analisada e investigada no caso concreto?

Conceitos de Vulnerabilidade

É certo que a situação de vulnerabilidade da vítima é uma das principais causas da sua anuência com o tráfico, tendo em vista atingir a autonomia e a capacidade do indivíduo, influenciando as suas decisões.

Conforme Daniel Resende Salgado, essa situação de vulnerabilidade não diz respeito às definições de pessoas vulneráveis segundo o Código Penal, como os menores de idade ou os doentes mentais, e sim à inexistência de igualdade material entre o traficante e a vítima.

Diversas são as situações de vulnerabilidade que influenciam no tráfico de pessoas, principalmente as relações desiguais de poder, tais como questões de gênero, raça, poder econômico, meio social e escolaridade, conforme evidenciado pelo relatório do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes (UNODC).

O relatório ainda explica que, no contexto do tráfico de pessoas, a vulnerabilidade se refere a fatores inerentes à pessoa ou em relação ao meio em que vive, como, por exemplo, a pobreza, a desigualdade, a discriminação e a violência de gênero.

Assim, todos esses fatores desencadeiam uma dificuldade financeira na pessoa, limitando suas escolhas e facilitando o seu recrutamento pelos traficantes.

A condição de vulnerável da vítima está diretamente ligada a fatores sociais, culturais, econômicos, políticos e ambientais, sendo entendida como uma situação de falta de opção de escolha da vítima, a qual acaba por acreditar que a exploração sexual é a sua melhor ou única saída.

Percebe-se que a vulnerabilidade possui grande influência tanto na hora do traficante escolher a sua vítima ideal e mais suscetível a aceitação da proposta, quanto na hora da vítima consentir com essa exploração.

Segundo Anália Ribeiro Pinto, as pessoas que se encontram em situações de vulnerabilidade socioeconômica, sem oportunidades de um emprego digno, são mais suscetíveis ao tráfico humano e, por isso, suas escolhas não devem ser consideradas livres e válidas.

Exatamente em decorrência disso, o ordenamento jurídico decidiu conceituar o “abuso de situação de vulnerabilidade” como um dos vícios de consentimento capaz de caracterizar o crime de tráfico de pessoas.

Ainda nesse sentido, o Relatório Global sobre Tráfico de Pessoas do UNODC de 2021 indicou que 51% dos casos de tráfico tinham como fator principal a vulnerabilidade econômica da vítima, reconhecendo o abuso da situação de vulnerabilidade como a principal forma de aliciamento utilizada pelos criminosos.

O relatório concluiu ainda que a pobreza e o desemprego são os principais motivos pelos quais as pessoas se tornam vítimas do tráfico de pessoas.

Acrescentou que as condições financeiras precárias e degradantes e a falta de perspectiva de um emprego digno levam as pessoas a aceitar esse tipo de oferta, visto que muitas vezes é a única opção de sobrevivência que encontram.

Diante do exposto, tem-se que a condição de vulnerável da vítima vai muito mais além do que ser menor de idade ou possuir alguma deficiência física ou mental. A vulnerabilidade está intimamente ligada ao meio e à forma em que a pessoa vive.

Em suma, a situação de vulnerabilidade está presente nos casos de pobreza, desemprego, lares desestruturados, violência doméstica, baixa escolaridade ou qualquer outro contexto que limite as opções de escolha do indivíduo, impedindo que tome uma decisão de fato livre de quaisquer vícios.

Nota-se, assim, que é muito mais provável que a proposta de exploração seja aceita por uma pessoa em situação de dificuldade financeira ou que viva em um lar desestruturado, do que por uma pessoa com boa condição socioeconômica.

Por tal motivo, é fácil evidenciar que os traficantes se aproveitam dessa vulnerabilidade e da falta de opção da vítima para obterem o resultado desejado.

Assim, é de grande importância que a condição de vulnerável ou não da vítima, ou seja, sua situação financeira, seu meio social ou sua escolaridade, sejam de fato analisados no caso concreto pelas autoridades responsáveis, como policias, membros do Ministério Público e os magistrados.

Em suma, os vícios de consentimento são elementares do tipo penal, o que significa dizer que fazem parte da conceituação/descrição da conduta e, sem eles, não há o que se falar em crime.

Conforme visto acima, uma das formas de vício de consentimento é o abuso da condição de vulnerável da vítima e, por isso, a sua existência faz com que o consentimento da vítima não seja considerado válido e o crime seja caracterizado.

Ao passo que, inexistindo os vícios, o consentimento da vítima é válido e, com isso, o crime é descaracterizado, ou seja, deixa de existir.

Por tal motivo e para que o delito não seja descaracterizado erroneamente, é necessário uma profunda análise e investigação da condição de vulnerável da vítima durante o processo.

Ocorre que, nem sempre essa investigação é de fato realizada. Na maioria das vezes apenas é analisado se a vítima consentiu e se estava em situação de fraude, rapto, coação ou engano, nada mencionando sobre o abuso da situação de vulnerabilidade da vítima.

E, ainda, quando mencionam a condição de vulnerabilidade, alegando sua inexistência, percebe-se que não há uma investigação sobre a condição financeira da vítima, sua escolaridade, seu lar, seus familiares e nem nenhuma outra situação que poderia de fato afirmar se a vítima é considerada vulnerável ou não.

Logo, como se pode falar em inexistência de abuso de vulnerabilidade se essa vulnerabilidade não é investigada/questionada?

Os processos costumam somente enfatizar que a vítima concordou e que possuía total clareza quanto ao seu destino. Porém, isso não é o mesmo que afirmar que a vítima não se encontrava em situação de vulnerabilidade. Logo, isso não prova que não houve abuso.

Portanto, é importante que exista uma investigação aprofundada no caso concreto. A situação financeira, social, de emprego e de escolaridade da vítima é de grande importância para se definir se existe ou não uma situação de vulnerabilidade.

A condição de vulnerável é o que torna o indivíduo um alvo muito mais fácil para os traficantes, visto que qualquer promessa de melhora na qualidade de vida será atrativa.

A análise cuidadosa e aprofundada sobre a vulnerabilidade é imprescindível para que não ocorra a descaracterização do crime de forma equivocada e para que os criminosos não saiam impunes de suas condutas.

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