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O avanço da tecnologia como elemento para o debate dos direitos à privacidade e da proteção aos dados pessoais

Por: Flávia Lubieska N. Kischelewski, Advogada e Mestranda em Direito pelo Instituto
Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP)


A ampla capacidade de coleta, armazenamento, compartilhamento e transferência de informações, assim como de dados pessoais em meios e velocidade de difícil mensuração refletem diretamente no modo como passamos a nos comportar e afetam bens jurídicos que nos são caros.

Para CASTELLS, computadores, sistemas de comunicação e programação genética são todos amplificadores e extensões da mente humana. O que pensamos e como pensamos é expresso em bens, serviços, produção material e intelectual (2020, p. 89). São, então, manifestações de nossa personalidade, tutelados juridicamente.

A promulgação da Lei nº 13.709/2018 (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais ou LGPD) fez com que temas como a proteção de dados pessoais e o direito à privacidade tenham adquirido grande relevância em razão dos impactos diversos que podem atingir as pessoas físicas, empresas privadas e organizações do setor público.

Um aspecto que marca, como ponto comum e em certa medida, a construção e a importância desses dois direitos, privacidade e proteção de dados pessoais, seria as evoluções tecnológicas e seus impactos sobre as sociedades. 

Esse artigo tem por objetivo examinar, brevemente, os antecedentes e questões comuns que contribuíram para o desenvolvimento e construção da doutrina sobre os direitos da privacidade e da proteção de dados pessoais, assentados nas evoluções tecnológicas e sociais.

Novos avanços tecnológicos e a construção do direito à proteção dos dados pessoais

Não há como negar a centralidade da revolução tecnológica e seus impactos sobre as pessoas e seus relacionamentos pessoais, comerciais, profissionais e, em regra, quaisquer interações que se possa imaginar, assim como em relação às maneiras como os indivíduos manifestam sua personalidade.

O desenvolvimento tecnológico facilitou a invasão e a exposição, por meio da divulgação midiática, de rotinas de pessoas famosas em jornais e revistas. Em 1890, a discussão sobre a inviolabilidade da personalidade ganhou força a partir do artigo “The Right to Privacy”, escrito por Samuel Warren e Louis Brandeis. 

Ainda que o tema não fosse inédito, tal artigo é considerado um marco para o desenvolvimento da teoria do direito à privacidade, especialmente nos Estados Unidos. O cerne da preocupação era o possível aumento da invasão da esfera íntima das pessoas, fomentado pela tecnologia disponível no final do século XIX.

Em tal período, defendia-se a existência de um princípio que pudesse ser invocado para proteger a privacidade do indivíduo, notadamente sua vida particular, da invasão por organismos da imprensa, fotógrafos ou por detentores de qualquer outro aparelho moderno hábil à gravação ou reprodução de cenas ou sons. 

Semelhantemente ao que se volta a discutir com mais intensidade nos dias atuais, havia preocupação com a permanência da guarda de registros de emoções, pensamentos e sensações que poderiam ser deduzidos até mesmo de expressões faciais. Propunha-se o chamado right to be let alone (direito de ser deixado sozinho).

Questionava-se, igualmente, a reprodução não autorizada de fotografias e de escritos particulares. O direito à honra ou o direito à propriedade não eram suficientes para justificar a necessidade da tutela jurídica, pois eram direitos da personalidade que estavam em jogo. 

Com efeito, a preocupação com as formas de manifestação do indivíduo publicamente e sua eternização por dispositivos eletrônicos cada vez mais sofisticados ganhou peso nas décadas subsequentes. O que havia na época, em termos de tecnologia, era ainda muito rudimentar. Nem por isso os debates atuais são menos semelhantes.

Warren e Brandeis propunham soluções relativamente simples para as questões do momento. O direito à privacidade serviria para oferecer amparo legal às decisões do indivíduo com vistas à comunicação de informações sobre sua vida privada. 

Caberia ao indivíduo decidir que assuntos seus poderiam ser considerados privados e quais poderiam ir para o âmbito público. Haveria uma presunção de autodeterminação e o Direito deveria tutelar isso, salvo se houvesse razões adequadas para não o fazer.

O que se questionava em termos de invasão da vida privada mais de cem anos atrás, embora não mude muito em termos de perguntas primárias, muda quando se analisa as mudanças sociais e tecnológicas.

Com o passar dos anos, uma verdadeira indústria assentada em rumores e fofocas estabeleceu-se, culminando com a profusão de realities shows, em que as pessoas concordam em abdicar de sua privacidade. Enquanto alguns pretendem preservar sua esfera privada ao máximo, outros querem abdicar da privacidade.

Face a tais circunstâncias, o direito à privacidade não deixou, obviamente, de existir, mas ganhou novos contornos. Certa flexibilidade na interpretação e aplicação decorreu, em parte, da necessidade de se levar em conta, por exemplo, o chamado interesse público.

Até onde o direito à privacidade seria similar para todas as pessoas? Uma pessoa conhecida publicamente, como um político ou um artista famoso, merecem a mesma privacidade que alguém comum? Quais os limites e o peso do espaço público e do espaço privado nessa avaliação? A imprensa deveria agir restritamente?

Seja como for, ainda que existam várias questões para exame, é inegável o fato de que a mudança na percepção do direito à privacidade é certamente impactada pela revolução tecnológica e pelo contexto social e cultural. 

Nesse contexto, verifica-se que novas invenções ocorrem sempre paralelamente a mudanças sociais. Anteriormente a superexposição estava, em grande parte, dependente de jornalistas e fotógrafos com relação a pessoas de interesse pelo público. Mais recentemente, não há obrigatoriedade da participação de um terceiro.

Basta um “post” em uma rede social, partindo de uma celebridade ou não. Determinadas pessoas buscam causar essa promoção ou até um assédio, seja para satisfação pessoal, seja para obter outras vantagens, inclusive lucro.

A autodeterminação que permite que o próprio indivíduo disponha sobre seu direito à privacidade (e também sobre seus dados pessoais) é cada vez mais importante, embora as consequências advindas pela abdicação espontânea desse direito nem sempre sejam as desejadas ou desejáveis, conforme o contexto. 

É certo que, mesmo que haja compartilhamento de certas atividades na internet, nem todos vislumbram a possibilidade ou têm interesse de que haja excessos com relação a isso. O conceito de público, assim como o de privado, são colocados em xeque.

A impossibilidade concreta, em certas circunstâncias, de impedir que algo “viralize” de uma maneira não prevista, faz com que o indivíduo perca a ingerência sobre algo que poderia ser, originalmente, restrito apenas a um grupo específico de pessoas.

É preciso ponderar que, mesmo que fatos da vida privada sejam compartilhados com outrem, eles permanecem na esfera privada ao se considerar que um número maior ou menor de pessoas – mas não o público em geral – saberá de determinadas particularidades. 

Essa premissa pode não ser aceita por todos, considerando que a esfera privada pode ser amplamente compartilhada por meio dos dispositivos de comunicação que carregamos em nossos bolsos e bolsas no dia a dia. As pessoas comuns são agentes dessa difusão de fatos privados e não mais apenas os órgãos de imprensa.

Apesar disso, percebe-se que os movimentos sociais e os questionamentos sobre as invenções tecnológicas que justificaram a escrita do artigo de 1890 não são totalmente distintos do que se verifica atualmente. Renovam-se algumas questões sobre direito à privacidade, ao mesmo tempo que surgem outras sobre os dados pessoais.

Novos avanços tecnológicos e a construção Direitos da personalidade

Embora o direito à proteção dos dados pessoais encontre, igualmente, suas origens em momentos anteriores à popularização dos computadores e da internet, os avanços tecnológicos também influíram diretamente sobre a necessidade de construção de uma teoria para justificar o amparo estatal.

Enquanto o direito à privacidade se atém mais às questões da informação e do sigilo, na Europa a preocupação foi além, isto, é, focou no tratamento dos dados pessoais e na chamada autodeterminação informativa, que representa, em síntese, o direito que a pessoa natural tem de ter ciência e poder controlar suas informações que circulam. 

A partir de decisões seminais na Alemanha, a doutrina dos Direitos da personalidade passou a ter seus contornos no continente europeu, gerando reflexos diretos na legislação da União Europeia e, mais recentemente, para as bases da LGPD.

Embora já houvesse precedentes anteriores, foi em 1982 que a Corte Constitucional alemã se debruçou sobre a lei local de recenseamento e os impactos existentes em função do processamento eletrônico de dados.

Foi o moderno desenvolvimento tecnológico que possibilitou o processamento ilimitado, a armazenagem e transmissão de dados em proporções até então desconhecidas.

Assim como no caso do mencionado artigo norte-americano, a despeito de um intervalo de aproximadamente 100 anos, a evolução tecnológica foi considerada pelo Direito diante dos riscos de violação aos direitos da personalidade.

No entender da justiça alemã, haveria um direito fundamental à autodeterminação informativa que garantiria o poder do indivíduo em determinar fundamentalmente por si mesmo sobre a coleta e utilização de seus dados pessoais. 

As modernas técnicas de processamento eletrônico de dados conduziram ao entendimento de que não existem dados insignificantes. Isso foi percebido não apenas pelo Poder Judiciário alemão, mas também pelas empresas que, hoje, são conhecidas como Big Techs.

Nas últimas décadas, as empresas perceberam que os dados pessoais tratados podem ser mais lucrativos do que obter isoladamente informações de natureza íntima e social. As novas tecnologias têm uma capacidade de processamento e de inferências relativas aos dados pessoais que nem mesmo Júlio Verne foi capaz de imaginar. 

A emergência de um novo paradigma tecnológico organizado em torno de novas tecnologias da informação, mais flexíveis e poderosas, possibilita que a própria informação se torne o produto do processo produtivo.

Ora, a matéria-prima da economia informacional, que surgiu no último quartel do século XX, são os dados pessoais, portanto, cabe ao Direito compreender essas novas questões que surgem, oferecendo as respostas das perguntas que vêm emergindo das novas relações e atividades humanas.

Não se trata mais de debater tão somente a dicotomia do público x privado, mas do potencial que o uso indevido de dados pessoais pode causar no seu titular, num cenário em que a tecnologia se alimenta de informações. 

Por tal aspecto, o direito à privacidade, como originalmente pensado, não responde aos anseios e questões sociais que envolvem o tratamento de dados pessoais.

A questão do direito da privacidade encontra abrigo na dicotomia do público x privado, ao passo que os direito à proteção de dados pessoais se centra na análise do dado pessoal, sua caracterização e as implicações que o tratamento pode gerar para seu titular. 

Por tal pressuposto, Bioni destaca que propugnar que o direito à proteção dos dados pessoais seria uma mera evolução do direito à privacidade é uma “construção dogmática falha” que dificulta sua compreensão (2019, p. 99).

Conclusão

O resgate dos primeiros estudos sobre privacidade e a exploração dos contextos sociais de outrora e os presentes, inclusive no direito comparado, marcados por inventos que mudam nossas relações interpessoais são relevantes para responder questões atuais que, por vezes, são as mesmas de outrora.

A preocupação sobre a violação de direitos da personalidade aqui exposta é antiga e, assim como ocorre atualmente, estava atrelada, em grande medida, ao avanço tecnológico e à possibilidade de invasão da esfera privada. Isso não mudou completamente, o que há é também a possibilidade de violação de dados pessoais.

O contexto atual, marcado pelo advento dos computadores pessoais e smartphones, que combinam diferentes formas de difusão da imagem, voz, textos escritos, ou seja, meios de expressão da personalidade, podem atingir tanto o direito à privacidade, como o de proteção de dados pessoais.

Na sociedade da informação, existem novas demandas que carecem de regulamentação, o que se tem identificado, de forma mais significativa, nas últimas décadas e que perpassam a esfera da vida privada. 

Mesmo que muitas perguntas das pessoas pareçam ser as mesmas do passado em relação aos seus direitos de personalidade, o contexto social e os recursos tecnológicos disponíveis estão longe de ser os mesmos. Tudo isso será ainda palco de debate por muitos anos, pois os avanços tecnológicos são irrefreáveis.


Referências

BIONI, Bruno Ricardo. Proteção de dados pessoais: a função e os limites do consentimento. Rio de Janeiro: Forense, 2019.

CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. 22. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2020. 1 v. (A era da informação: economia, sociedade e cultura).

MENDES, Laura Schertel. Habeas data e autodeterminação informativa. Revista Brasileira de Direitos Fundamentais & Justiça, v. 12, n. 39, p. 185-216, 26 mar. 2019.WARREN, Samuel D.; BRANDEIS, Louis D. The Right to Privacy. Harvard Law Review, Boston, v. 4, n. 5, p. 193-220, 15 dez. 1890. Disponível em: https://www.cs.cornell.edu/~shmat/courses/cs5436/warren-brandeis.pdf. Acesso em: 06 jul. 2021.

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