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Acordo de não persecução cível: a regulamentação pela Lei N. 14.230/2021 e a (In)Segurança Jurídica

O presente artigo tem o objetivo de estudar a introdução do acordo de não persecução cível no domínio da improbidade administrativa e a sua recente regulamentação pela Lei n. 14.2030/2021, com a inserção do art. 17-B na Lei Geral de Improbidade Administrativa.

Antes de se adentrar no histórico do acordo de não persecução cível, será realizada uma breve contextualização da consensualidade no ordenamento jurídico brasileiro e, especificamente, no domínio da improbidade administrativa.

Em seguida, será delineada a introdução do acordo de não persecução cível pela Lei n. 13.964/2019 e a insegurança jurídica causada pela ausência de regulamentação mínima do instituto.

Por fim, será feita sucinta análise da regulamentação do instituto pela Lei n. 14.2030/2021 e da suficiência dessas disposições para a efetividade do instituto.

A consensualidade na Lei N. 8.429/1992

Na última década, a submissão ao Poder Judiciário deixou de ser vista como a única e principal via de resolução de litígios e o ordenamento jurídico brasileiro passou a robustecer as técnicas e instrumentos de consensualidade, técnica em que as partes buscam a solução do conflito pelo diálogo, com abdicações recíprocas em prol do interesse alheio.

No campo da improbidade o tema foi controvertido por mais tempo, já que, durante praticamente toda a vigência da Lei n. 8.429/1992, houve vedação expressa à solução consensual de litígios pela norma inscrita no § 1º do art. 17 do aludido diploma legal, que proibia a utilização de transação, acordo ou conciliação.

A vedação à negociação então existente estava em consonância com o contexto da época em que editada a lei, tratando-se de um cenário em que prevalecia uma ideia fechada de interesse público e, no âmbito processual, procedimentos negociais eram institutos de uso escasso e a judicialização se apresentava como meio eficaz de punição e prevenção de ilícitos.

O histórico da Lei n. 8.429/1992 foi marcado por excessiva judicialização e morosidade dos julgamentos.
Dados obtidos pelo Conselho Nacional de Justiça apontaram que, em dezembro de 2013, somavam, entre ações julgadas, pendentes de julgamento e recém ajuizadas, o total de 8.183 (oito mil cento e oitenta e três) processos, bem como que a duração média observada entre o ajuizamento e o trânsito em julgado dos processos era de pouco mais de quatro anos.

Outro dado relevante é que, em quase 90% dos casos analisados, foi informado pelo referido órgão judiciário que não houve o efetivo ressarcimento do dano causado.

Por conta desse cenário e pela influência da experiência da negociação nos demais ramos do direito sancionador, a consensualidade passou a ser vista como meio para obtenção de maior efetividade na tutela da probidade administrativa, por meio da busca dialogada pela resolução do conflito, com abdicações recíprocas em prol do interesse público.

Nesse contexto, foi editada a Medida Provisória n. 703/2015 que permitiu, de forma transitória, a negociação no campo da improbidade administrativa ao revogar a vedação constante no § 1º do art. 17 da Lei n. 8.429/1992.

A não conversão em lei dessa medida provisória restabeleceu os efeitos do aludido dispositivo da Lei n. 8.429/1992 e concebeu um cenário de enorme insegurança jurídica à atuação consensual que se desenhava na vigência do permissivo legal.

Na doutrina, a superação da proibição era tema controvertido, mas, na prática, instrumentos consensuais continuaram a ser utilizados no campo da improbidade administrativa, tendo como exemplo a previsão do Ministério Público da possibilidade de transacionar na matéria por meio da tomada do compromisso de ajustamento de conduta com fundamento na Resolução n. 179/2017 do Conselho Nacional do Ministério Público.

Com a edição da Lei n. 13.964/2019, popularmente conhecida como Pacote Anticrime, houve alteração no § 1º do art. 17 da Lei n. 8.429/1992 e a controvérsia acerca da possibilidade de resolução consensual dos litígios no âmbito da improbidade administrativa foi encerrada com a nomeação do acordo de não persecução cível como o instituto adequado.

A insegurança jurídica na introdução do acordo de não persecução cível

A superação da vedação ao uso da consensualidade representava a modernização do sistema sancionador da Lei n. 8.429/1992 e o caminho para obtenção de maior efetividade na tutela da probidade administrativa, na linha da perspectiva processual de valorização da autocomposição na resolução de litígios, trazida pelo Código de Processo Civil (Lei n. 13.105/2015), bem como das demais legislações que compõem o microssistema de combate a atos lesivos à Administração Pública e já tratavam sobre consensualidade, destacando-se o delineamento do instituto de colaboração premiada pela Lei n. 12.850/2013 e a regulamentação dos acordos de leniência (art. 86 da Lei n. 12.529/2011; e arts. 16 e 17 da Lei n. 12.846/2013).

A introdução do acordo de não persecução cível no ordenamento jurídico, contudo, não exauriu o cenário de insegurança jurídica na consensualidade no campo da improbidade administrativa, pois veio desacompanhada do estabelecimento de parâmetros mínimos para sua aplicabilidade.

Houve veto presidencial ao delineamento do procedimento de celebração do acordo (art. 17-A, §§ 1º, 2º, 3º, 4º e 5º), que seria inserido na Lei Geral de Improbidade Administrativa pelo Pacote Anticrime, por se considerar injustificável a atribuição da legitimidade exclusiva ao Ministério Público para a celebração de acordos, sem a inclusão dos então colegitimados na ação de improbidade administrativa, e ficou previsto apenas a possibilidade de as partes requererem ao juiz a interrupção do prazo para contestação por prazo não superior a 90 (noventa) dias.

Nesse quadro, pairava dúvida acerca da legitimidade para celebração do acordo, das hipóteses de cabimento, dos momentos em que possível a celebração, da necessidade de homologação judicial, entre outras formalidades.

Diante da lacuna legal e da existência de projetos de reforma da Lei Geral de Improbidade Administrativa em tramitação no Congresso Nacional, esperava-se que o problema da segurança jurídica no acordo de não persecução cível fosse objeto de deliberação legislativa.

Enquanto inexistente regulamentação legal, coube aos colegitimados da ação de improbidade a implementação do instituto em seus âmbitos, mencionando-se, apenas a título de exemplificação, a elaboração da Orientação n. 10/2020, do Ministério Público Federal, e a Portaria Normativa AGU n. 18/20211.

A efetividade do instituto, contudo, ficou comprometida em razão de a regulamentação isolada por cada um dos legitimados não vincular os demais colegitimados e cada um de seus ramos, que detinham atribuição para editarem as suas próprias regulamentações.

Esse cenário prejudicava a previsibilidade e a segurança jurídica nas negociações e, consequentemente, contribuía para a baixa atratividade do termo para acusados e investigados por ato de improbidade administrativa.

Por conta desse fator, até então, o acordo de não persecução cível não teve o impacto esperado na tutela da probidade administrativa.

A título de exemplo, segundo dados disponibilizados pelo Anuário do Ministério Público Brasil, foram celebrados pelo Ministério Público, em 2020, 138 (cento e trinta e oito) acordos de não persecução cível e, em 2021, esse número chegou a 210 (duzentos e dez). Os dados são pouco expressivos, tendo em vista que a improbidade administrativa é a temática mais recorrente em Inquéritos Civis e Notícias de Fato que versam sobre matéria cível, com 6.270 (seis mil, duzentos e setenta) procedimentos em tramitação, segundo dados do Conselho Nacional do Ministério Público.

A expectativa de regulamentação do acordo de não persecução cível apenas se confirmou com a publicação da Lei n. 14.230/ 2021, que implementou uma série de alterações na Lei n. 8.429/1992.

A Regulamentação pela Lei 14.230/2021

Quando da reforma da Lei Geral de Improbidade Administrativa, o legislador, por meio do disposto no art. 17-B, preencheu lacuna legal e previu pressupostos para a celebração do acordo de não persecução cível e circunstâncias a serem observadas pelo celebrante.

Como principais novidades, houve expressa disposição sobre a legitimidade ativa para celebração do acordo, os seus resultados considerados imprescindíveis, o momento em que possível a celebração, a necessidade de homologação judicial, a necessidade de oitiva da pessoa jurídica lesada e a participação do Tribunal de Contas competente.

A legitimidade para celebrar o acordo foi atribuída exclusivamente ao Ministério Público, que passou a ser o único legitimado também para a propositura da ação.

Essa alteração, contudo, encontra-se suspensa por decisão monocrática, ad referendum, do Plenário do Supremo Tribunal Federal, proferida pelo Ministro Alexandre de Moraes nos autos das ADI´s 7.042/DF e 7.043/DF.

O resultado da celebração do acordo de não persecução cível há de contemplar, necessariamente, o integral ressarcimento do dano e a reversão à pessoa jurídica lesada da vantagem indevida obtida.

Além disso, o legislador previu a possibilidade de ser pactuada a adoção de mecanismos e procedimentos internos de integridade, de auditoria e de incentivo à denúncia de irregularidades e a aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta no âmbito da pessoa jurídica, se for o caso.

Ficou delimitado que a avença poderá ser celebrada no decorrer da apuração do ilícito, no curso da ação de improbidade e no momento da execução da sentença condenatória, sendo exigida a homologação judicial, qualquer que seja o momento da celebração, e a aprovação pelo órgão do Ministério Público competente para apreciar as promoções de arquivamento de inquéritos civis, apenas quando a celebração ocorrer em momento anterior ao ajuizamento da ação.

O legislador estabeleceu como indispensável a oitiva do ente lesado, e, para fins de apuração do valor do dano a ser ressarcido, ficou estipulada como necessária a participação do Tribunal de Contas competente, que há de se manifestar, com a indicação dos parâmetros utilizados, dentro do prazo de 90 (noventa) dias.

Pelo texto legal, deve ser considerada a personalidade do agente ímprobo, a natureza, as circunstâncias, a gravidade e a repercussão social da conduta, bem como as vantagens, para o interesse público, na solução célere do litígio. Na hipótese de descumprimento do acordo pactuado, o investigado ou acusado ficará impedido de celebrar novo acordo pelo prazo de 5 (cinco) anos.

As novas disposições sobre o acordo de não persecução cível, em que pese representem um avanço na regulamentação do instituto pelo simples fato de suprir lacuna legal, não resolvem o quadro de insegurança jurídica por não serem exaustivas.

Há de se destacar a tentativa de racionalização e modernização do instituto, com a atribuição de legitimidade privativa ao Ministério Público, a previsão como necessária da homologação judicial e a possibilidade de correlação com políticas de integridade. Contudo, o legislador utilizou termos vagos e deixou de dispor sobre o procedimento e a consequência do descumprimento de muitas das formalidades previstas.

Nesse sentido enquadram-se, por exemplo, a ausência de diretrizes sobre os limites impostos ao juízo na homologação judicial, a necessidade de o intérprete valorar a personalidade do agente, bem como a natureza, as circunstâncias, a gravidade e a repercussão social do ato de improbidade, sem a indicação objetiva das hipóteses de cabimento do acordo de não persecução cível.

De igual forma estão a ausência de prazo e procedimento estabelecidos para a necessária oitiva do ente lesado e das possíveis consequências do silêncio ou discordância em relação aos termos do acordo, bem como a previsão da necessária participação do Tribunal de Contas competente para apuração do valor devido à título de ressarcimento desacompanhada de disposições acerca de eventual controvérsia sobre o referido montante e mora no cumprimento do trâmite.

Conclusão

Diante da subjetividade e das lacunas legais observadas, bem como pela suspensão do dispositivo que atribuía a legitimidade exclusiva ao Ministério Público para celebração e ajuizamento da ação, infere-se que a inovação trazida pela Lei n. 14.230/2021 é insuficiente para cessar a insegurança jurídica na implementação do acordo de não persecução cível, pois permanecerá o quadro de regulamentações internas por cada um dos legitimados ativos e, inclusive, por cada ramificação de seus órgãos.

Essa variedade de regulamentações, conforme já dito, prejudica a efetividade do instituto, vez que reduz a previsibilidade e a segurança jurídica da atuação consensual, além de, consequentemente, diminuir a atratividade do acordo para investigados ou acusados por ato de improbidade administrativa.

Em face desse cenário, é possível constatar que a implementação do acordo de não persecução cível ainda carece de maior atenção do legislador para que o instrumento agregue efetividade à tutela da probidade administrativa.

Referências

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