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Direito ao esquecimento: decisão é compatível com a Constituição?

A recente decisão do Supremo Tribunal Federal, que considerou o direito ao esquecimento incompatível com a Constituição Federal resolve aspectos essenciais, mas não encerra a discussão.

Entende-se que o direito ao esquecimento é um rótulo aplicado segundo critérios exageradamente elásticos, o que acaba por dificultar a solução de demandas mais simples e objetivas, em que não se pretende apagamento ou censura.

Argumenta-se que os provedores de buscas vão muito além de simples pontes até a informação e que adotam critérios que contribuem para perpetuar erros que geram graves constrangimentos, como o destaque dado a informações desatualizadas ou falsas em detrimento de fatos novos e verdadeiros.

Propõe que o direito ao arquivamento, entendido pela reindexação ou desindexação de informações, é uma solução viável do ponto de vista técnico e perfeitamente alinhada aos preceitos constitucionais.

Conclui com o entendimento de que as soluções propostas, apesar de já conhecidas, dependem de uma nova compreensão a respeito do que é o direito ao esquecimento e do papel dos provedores de busca na materialização desse direito.

Um direito em busca de significado

O Supremo Tribunal Federal se posicionou recentemente sobre o chamado direito ao esquecimento, concluindo pela incompatibilidade com a Constituição Federal.

Fixou tese de repercussão geral, ao negar provimento ao Recurso Extraordinário (RE) 1.010.606, conhecido como caso Aída Curi. Embora o julgado resolva aspectos centrais sobre o tema, a discussão parece estar longe de esgotada e merece ser aprofundada.

Inclusive, já está em curso o debate sobre a delimitação da decisão do STF. O caso Aída Curi, primeiro em que a tese foi aplicada, já foi devolvido à 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça para reanálise e eventual juízo de retratação.

Ademais, a vice-presidência da corte também liberou para reanálise o Recurso Especial (REsp.) 1.660.168, relacionado a caso de 2018, em que foi aplicado direito ao esquecimento para determinar que Yahoo, Google e Microsoft filtrassem informações sobre supostas fraudes em concurso público.

Além disso, parece fundamental trabalhar em uma definição mais adequada sobre o significado e a abrangência do chamado direito ao esquecimento. O uso comum adotou a expressão popularizada pelo direito europeu, o “right to be forgotten”. Mas, enquanto lá já foi definida e enquadrada, aqui ainda vem sendo usada de forma quase universal.

O direito ao esquecimento abriga pretensões de natureza diversa, sendo mais frequentemente a desindexação, a remoção de conteúdos da internet e, como no caso discutido pelo STF, o impedimento para que fatos do passado sejam reavivados.

Como ideia, o direito ao esquecimento é ainda mais impreciso. A expressão parece estar envolta em uma nuvem de carga negativa, associada às pretensões de mudar, censurar ou apagar a história.

O “x” da questão é que interpretações muito abrangentes ou imprecisas sempre criam dificuldades adicionais para a solução de demandas eventualmente mais limitadas e objetivas, prejudicando a prestação jurisdicional.

Esse ó ponto que nos interessa. Informações ultrapassadas, imprecisas ou até mesmo falsas são abundantes na internet. Criam graves constrangimentos para suas vítimas, que enfrentam obstáculos, por vezes intransponíveis, para obter reparação.

Em muitos casos, não se deseja apagar fatos do passado ou sequer impedir acesso a eles, nem mesmo que sejam esquecidos. O que se pretende é apenas o arquivamento, como era a regra na era pré-internet. Ou seja, deixar que certa informação deixe de ser destacada pelos buscadores. Aliás, geralmente, é disso que se fala no direito europeu quando é invocado o direito ao esquecimento.

Se, no lugar de esquecimento, pensarmos em arquivamento, veremos que não há, necessariamente, um conflito entre os interesses da sociedade e dos indivíduos que buscam algum tipo de reparação pela exposição de informações indevidas.

Em abril de 2018, a revista eletrônica Consultor Jurídico, noticiou decisão da 4ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, que autorizou um médico a alterar seu nome a fim de que pudesse se livrar de vê-lo associado às notícias falsas, que encontradas na internet lhe causaram graves constrangimentos, prejuízos e dificuldades para o exercício de sua profissão.

Apesar de provada a inocência do médico, o Google continuou apresentado links para notícias antigas e falsas relacionando ao crime (4). O relator do caso, desembargador Ênio Santarelli Zuliani, propôs uma saída inusitada. Não vislumbrando outra alternativa, decidiu que o médico poderia mudar de nome.

O direito ao arquivamento aqui proposto parece ser uma melhor solução para esse tipo de caso, extremamente comum nos tribunais. O caso é emblemático.

A guerra bilionária pela primeira página do Google

Há um detalhe fundamental em defesa da tese do arquivamento. Por padrão, o Google oferece dez links a cada busca, sendo que 60% das pessoas se contentam com o que encontram na primeira página, entre esses links.

Por isso, há uma guerra permanente pelo espaço da primeira página, que envolve desde empresas vendendo produtos, até pessoas tentando construir uma reputação.

Segundo uma reportagem da edição americana da revista Forbes, as empresas gastam anualmente 80 bilhões de dólares em ações para posicionar seus produtos e serviços nesse espaço. Ou seja, o que aparece em primeiro lugar faz toda diferença, porque a maior parte das pessoas nunca irá além.

Voltemos ao caso do médico. A cada vez que seu nome era pesquisado, o Google apresentava em sua primeira página as mesmas informações antigas e falsas sobre um crime que ele não cometeu, dificultando o acesso a verdade.

Comportava-se de forma tão reprovável como um editor que insistisse em publicar a mesma manchete, com dados falsos, todos os dias.

Uma nova visão sobre os provedores de buscas

Avançar nessa discussão depende de um conhecimento mais detalhado sobre o funcionamento dos provedores de buscas e de seus propósitos. Eventualmente, de uma revisão de conceitos que há muito tempo balizam decisões nos tribunais.

Como se sabe, a responsabilização dos provedores de buscas como o Google pelos conteúdos que apresentam vem sendo sistematicamente afastada. Um dos marcos para consolidação desse entendimento é uma decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) de 2013, sobre o caso da apresentadora Xuxa Meneghel.

Ela reivindicou a remoção de conteúdos com referências a uma cena de nudez, que protagonizou ao lado de um adolescente, em um filme gravado no início de sua carreira. Em um voto importante, da ministra relatora, Nancy Andrighi, entendeu-se que os buscadores apenas indicam onde os conteúdos podem ser encontrados, não sendo responsáveis por eles. Mais tarde, essa interpretação foi incorporada pelo Marco Civil da Internet Lei Nº 12.965/2014.

Porém, embora não produza informação, faz um trabalho muito parecido com o que é feito por qualquer editor, a saber: coletar, selecionar, hierarquizar e publicar as informações produzidas pelo repórter, mandando as consideradas mais importantes para a primeira página – onde chamam mais atenção –, e as demais para os rodapés, onde quase ninguém lê.

A Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, Lei nº 13.709/2018, dá pistas importantes para se repensar os limites de responsabilidade do Google. Segundo o inciso X do artigo 5º, a lei define como tratamento de dados pessoais:

“toda operação realizada com dados pessoais, como as que se referem a coleta, produção, recepção, classificação, utilização, acesso, reprodução, transmissão, distribuição, processamento, arquivamento, armazenamento, eliminação, avaliação ou controle da informação, modificação, comunicação, transferência, difusão ou extração”.

O rol descreve com precisão algumas das atividades executadas pelo Google. A possibilidade de se enquadrar o Google como agente de tratamento, nos termos da LGPD, é uma discussão que merece atenção, ainda que limitada a um exercício teórico a fim de se entender melhor o papel dos provedores de buscas.

Conclusão

A essa altura, cabe voltar à pergunta. Com tanta inteligência algorítmica, o que explica o fato de o Google, reiteradas vezes, apresentar notícias antigas e falsas com destaque, ao passo que esconde informações atualizadas? Por que, diferente dos jornais, o Google apresenta em sua “manchete” a mesma informação defasada, por décadas?

O médico aqui mencionado, que teve seu caso discutido pelo TJ-SP e ganhou direito a mudar de nome, suportou as mesmas agruras enfrentadas por um cidadão espanhol que acabou famoso por sua luta contra os algoritmos.

Mario Costeja, indignado com informações ultrapassadas que encontrava sobre si no Google, levou seu caso até a última esfera de discussão, até ver reconhecido o que se chamou de Direito ao Esquecimento, pelo Tribunal de Justiça da União Europeia.

Na verdade, Costeja conseguiu o direito de quebrar os links entre seu nome e notícias defasadas apresentadas pelo Google. As informações ainda estão lá, nos veículos que as publicaram. Talvez, o dito direito ao esquecimento, nesse caso, tenha sido um exagero, um abuso da retórica.

A decisão da corte europeia obrigou o Google a receber e avaliar pedidos de desindexação de todos os cidadãos europeus. Segundo noticiado pela a NPR (National Public Radio), dos Estados Unidos, 650 mil requisições foram apresentadas até 2018.

A concessão do direito obedece a uma série de critérios, que passam pela relevância da informação, das pessoas envolvidas, a existência de falsidades e, sobretudo, o interesse da sociedade no fato que se pretende ver desindexado.

Embora limitado, o arquivamento por meio da reindexação mostra-se uma solução adequada, em certos casos, pois não se oculta a informação, nem se cria grandes barreiras intransponíveis para acessá-las. Não se apaga. Não se esconde. Apenas impede a exibição de fato falso e irrelevante.

Muitos dos que pedem o esquecimento provavelmente se satisfariam com solução mais simples e eficiente: o arquivamento, pela quebra de links, ou a reindexação, de modo a atribuir mais destaque aos novos e corretos, em detrimento do antigos e falsos. É tecnicamente viável e plenamente de acordo com a decisão do STF.

Os arquivos sempre foram vistos como locais seguros para preservar a história. E continuam sendo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BODEN M. A., Inteligência Artificial. São Paulo. Editora da Unesp, 2020.

DONEDA, D., Da privacidade de à proteção de dados pessoais. Rio de Janeiro. Renovar, 2006.

HOFFMAN-RIEM W., Teoria Geral do Direito Digital. Rio de Janeiro. Editora Forense, 2020.

MENKE F., VALLE DRESH R.F., Lei Geral de Proteção de Dados. Indaiatuba. Editora Foco Jurídico, 2021.

SARLET, I. W. FERREIRA NETO, A.M, O direito ao esquecimento na sociedade da informação. Porto Alegre. Livraria do Advogado, 2019.

SCHMDIT E., ROSENBER J., How Google Works. New York. Grand Central Publishing, 2014.

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Autor: Alexandre Secco

Advogado especializado em gestão de reputação, privacidade e informação. Jornalista, passou pela Folha de S.Paulo, Veja e Exame. É formado em comunicação social e Direito. É pós-graduando do curso de Direito Digital.

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